LUZIA MINHA FILHA, ACHO QUE FOI PECADO...
Em Julho de 1961, nos mudamos da Rua Wenceslau Brás, para a rua do Catete, perto da Igreja da Sé.
À tarde, quando a casa já estava vazia e cada um conferia se não havia se esquecido de nada pelos cantos, eu fiquei sozinha no passeio, vendo o caminhão sumir no fim da rua, levando a nossa mudança. A rua deserta causou-me amargura, fazendo-me continuar parada ali, até no momento que papai trancou aquela porta para sempre.
Assim eu não enfrentei a emoção de olhar para aqueles cômodos vazios, nem para o fogão a lenha que havia sido restaurado pelo irmão de minha avó, que veio lá da roça, só para faze-lo com o maior carinho; e nem para o quintal, agora, silencioso das nossas brincadeiras.
Procurei me animar, lembrando-me que iríamos começar uma vida nova em outra casa, onde não haveria tantas lembranças tristes. Dessa forma, eu fui ingrata com o nosso quintal, não me despedindo dele, nem agradecendo-o por ter sido a nossa floresta, e o nosso parque de diversões, proporcionando-nos muitas alegrias e inúmeros tipos de frutas, que nos obrigavam a cometer aventuras emocionantes, para captura-las nos pés.
Eu havia nascido ali...
Estava anoitecendo. Minhas duas irmãs mais velhas foram a pé mesmo. Os quatro irmãos estavam no trabalho e à noite já chegariam no outro endereço. Éramos dez, sendo cinco homens e cinco meninas. Minha mãe estava de resguardo do meu irmão caçula, e papai arrumou um Buick preto, para leva-la.
Nesse carro, mamãe foi no banco da frente, carregando o recém nascido. No banco de trás, foram: papai, Jane, que tinha cinco anos, eu com dez, e minha irmã, de doze anos.
Minha avó estava em Ouro Preto, onde permaneceu por mais uma semana. Parecia até que estávamos mudando de cidade.
Quando chegamos na casa nova, que felicidade! Aquele cheiro de tinta fresca... era tudo diferente.
Ali não tinha quintal, mas tinha uma escada de madeira que compensou um pouquinho. A casinha tinha dois andares. O chão não tinha buracos, e era taqueado. Na parte de cima, o piso era de tábuas bonitas, que ainda guardavam um resto de brilho da cera do inquilino anterior.
Nessa primeira noite não tinha luz, porque a usina só iria liga-la no dia seguinte.
Dormimos no chão, porque estava escuro para armarem as camas. Também a felicidade era tanta, que se tivesse luz, talvez eu nem dormisse, porque passaria a noite, observando cada detalhe da casa nova.
O cheirinho de óleo dos portais me inebriou, fazendo-me dormir mais depressa, para que o dia amanhecesse rapidamente.
Ali tudo parecia mais colorido, mais claro, mais alegre. Era porque as lembranças ruins, haviam sido trancadas na rua Wenceslau Brás.
Alguns meses se passaram e minha mãe teve mais um filho. A minha avó quis escolher o nome dele, dizendo que seria Jeová, para ver se ele teria mais sorte que os outros sete, que haviam morrido quando cada um tinha dois anos, mais ou menos. Lembro-me dela comentando, que não poderia batiza-lo com o nome de Jesus, porque seria sacrilégio.
Pertinho de nós, o padre Avelar construiu um colégio bem grande, e o colocou pra funcionar, antes mesmo da construção terminar.
Duas das minhas irmãs mais velhas, estudavam lá, na mesma sala. Eu iniciava ali, o curso preparatório, para me ingressar no ginasial. Estudávamos à noite.
Meu irmão mais velho havia se casado, muitos meses antes.
Brincávamos na rua, com a nossa vizinha Vânia, que regulava idade comigo.
O meu irmãozinho jeová, estava com cinco meses e ele era pálido... pálido... desde que nasceu.
Ele ficou meio doentinho. Eu, para me proteger, passei a brincar mais ainda na rua, jogando peteca com a Vânia, ou mergulhada num joguinho de "ludo" que ela tinha. Eu queria fazer vista grossa para a situação, não prestando muita atenção nele.
Depois do almoço, eu e ela estávamos no passeio, quando ouvi a minha avó chamar... era mais ou menos uma hora da tarde. Ela me recomendou que era para eu ir fazer companhia para a minha cunhada, porque a qualquer momento, ela sentiria as dores do parto. Nesse instante então, eu deveria voltar correndo e chama-la, porque ela é que iria ser a parteira.
Eu fiquei lá até quatro horas. Minha cunhada não sentiu nada. Minha aula no Ginásio começava seis horas... foi aí que me despedi dela, porque dali a pouco, meu irmão chegaria do trabalho.
Voltei por um atalho, onde o capim e outros matos, tinham a altura de uns dois metros.
Quando me embrenhei ali, já senti um grande perfume de rosas. Segui o seu rastro...
Qual foi a minha surpresa... encontrei uma árvore, acreditem... uma árvore abarrotada de cachos de rosas. O peso dos cachos eram tanto, que a árvore ficou arredondada, como se fosse um enorme abajur. Via-se poucas folhas e muitas, muitas rosas, que iam até quase no solo.
Olhei aquilo, sem entender direito... nunca tinha visto uma árvore de rosas. Nunca tinha ouvido falar de tal maravilha. Meu coração bateu mais forte. Entrei dentro dela. Parecia que eu estava entrando num salão perfumado e decorado para uma festa. Olhava tudo, apalpava o tronco não muito grosso, procurando diferenciar onde estava o tronco de outra árvore que serviu-lhe como esqueleto, mas tudo estava interligado. Desisti dessa lógica e saí dali de dentro, para apreciar ao redor, sentindo aquele perfume inebriante.
Lembrei-me que precisava ir pra casa, por causa da escola. Então, peguei no meu vestido para não machucar as minhas mãos, e fui colhendo aqueles buquês. Eram tantos arranhões, mas eu nem ligava. Fui colocando aquelas flores empilhadas no chão. Depois, abracei tudo, e sai dali, agradecendo-as em voz alta, porque aquele era um momento mágico.
Eram tantas, que eu quase não enxergava o chão.
Ao passar em frente da Igreja da Sé, eu entrei lá, e fui direto na imagem de Nosso Senhor dos Passos.
Reparti as minhas rosas com ele, colocando a metade, aos seus pés. Ficou lindo...
Ajoelhei-me abraçada ao meu buquê. Rezei um Pai Nosso, uma Ave Maria... pedi que ele desse saúde ao meu irmãozinho Jeová.
Enquanto eu rezava, fiquei prestando atenção na barra da túnica dele. Havia um barrado de fios dourados, entrelaçados... lindos!
Terminei a reza rapidamente, porque tive uma brilhante idéia: coloquei meu buquê no chão, peguei a túnica dele, levei a barra na minha boca, e comecei a cortar os fios dourados com meus dentes. Consegui tirar um bom pedacinho. Foi difícil, mas consegui.
Beijei a saia dele, peguei de volta o meu buquê que estava atrás de mim, e sai dali, com ar de vencedora... com o coração de quem encontrou o antídoto da vida... do milagre!
Fui depressa pra casa, e quando cheguei, a minha mãe fez cara feia ao me ver coberta de flores perfumadas. Ela tinha trauma de flores.Talvez eu devesse joga-las no lixo, mas eu peguei uma jarra branca, sextavada, que havia sobre a mesa, e coloquei-as ali dentro, completando com água, até onde foi possível. A sala ficou bonita e perfumada como ela só...
Aproveitei um momento raro que meu irmão Jeová ficou sozinho, e fui no tanque. Peguei um pedacinho de sabão de barra, amassando-o entre os dedos. Me aproximei dele, arredei as mechas de cabelo que cobriam a sua testa, e grudei ali, o pedaço de sabão. Por cima, colei com todo o cuidado, os fios dourados e milagrosos da barra da túnica do Senhor dos Passos.
Rapidamente cobri sua testa, com seus cabelos. Fiquei feliz... que só Deus sabe!
Tomei um banho rápido, sai apressada para a escola, porque já estava atrasada. Minhas irmãs já haviam ido.
Aquele era o meu segredo com Deus, Com o Senhor dos Passos, com a minha inocência.
Assisti a aula, tranquila.
Depois do recreio, no meio do terceiro horário, alguém bateu na porta. Logo que a abriram, um senhor disse assim: __ Tenho um recado para a Maria Auxiliadora! Pode pegar o seu material e ir pra casa agora, porque as suas irmãs já foram.
Levantei-me apressada, peguei meus cadernos e livros, e sai dali.
Andei dois quarteirões e cheguei em casa. A porta estava aberta, e ao entrar, já ouvi os gritos de choro das minhas irmãs, que foram se derreter no segundo andar.
Devagarinho entrei na sala. Lá estava o Jeová, descansando-se sobre a máquina de costura da minha mãe. A toalha branca mais bonita que havia na nossa casa, estava sob o corpinho dele. Eu me aproximei, passei a mão sobre o seu rosto e levantei a sua franjinha, para arrancar os fios milagrosos que havia plantado ali. Tentei tirar, mas estavam muito grudados. Eu tive a impressão de que se insistisse, iria machuca-lo. Espalhei as mechinhas, tampando tudo outra vez.
Minha mãe chorava desesperada, encostada na parede à direita. Minha avó, pousava a mão sobre o ombro dela, e tentando consola-la, disse essas palavras:
__Luzia... minha filha! Acho que foi pecado, eu colocar nele, o nome de Jeová!
20/12/2004
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"Eu passei dezenas de anos sem voltar na cidade de Mariana. Em Julho de 2004 eu estive lá e fui na igreja da Sé. Na túnica do Senhor dos Passos, ainda faltava o mesmo pedacinho que eu havia arrancado.
Voltei lá em Outubro do mesmo ano, e a roupa dele já havia sido restaurada."