DORES DA ALMA
Na década de cinquenta, era comum famílias numerosas.
Eu estava com quatro anos, tinha sete irmãos mais velhos, sendo quatro rapazes e três meninas. Abaixo de mim, havia o Afonsinho que tinha um ano e alguns meses. Antes, minha mãe já havia perdido dois meninos, com dois e três anos de idade.
Minha avó morava conosco e cuidava de nós como se fôssemos seus filhos.
Do segundo que morreu, minha mãe guardou um pedacinho do cabelo, como recordação. Toda vez que a saudade apertava, ela ia para o quarto, sentava-se na cama e tirava do criado mudo uma lata retangular. Com cuidado, pegava a mexinha loura, levando-a carinhosamente até a sua face, onde as lágrimas passavam correndo como uma enxurrada.
Estávamos muito felizes com o Afonsinho. Rostinho arredondado, cabelos castanhos... Ele era muito alegre. Fazia-nos rir demais. Quando minha irmã mais velha o levantava, segurando debaixo dos seus braços, ele chegava a gritar de tanta felicidade, cada vez que ela o movimentava de cima para baixo, fazendo vento no seu rosto. Esse vento fazia a camisolinha que ele vestia, parecer um balão.
Papai era risonho e falante, recitava versos dos grandes poetas, gostava de música clássica, do mesmo jeito que sabia valorizava qualquer folclore. Conversava muito conosco e comentava sobre os enredos das óperas, enquanto as ouvíamos no rádio. Era carinhoso com todos nós e tinha imensa paixão pelo caçula, o Afonsinho. Meu irmãozinho tinha do meu pai, não só o nome, mas também herdara a sua sensibilidade.
Todas as manhãs, papai ou minha irmã mais velha tinham que leva-lo no jardim que havia no quintal, para que ele pudesse deitar o seu rostinho numa flor chamada "madrugada", que era a sua preferida. Ao sentir o contato da flor no seu rosto, ele fechava os olhos e suspirava profundamente. Isso virou um ritual que todos nós assistíamos com emoção.
Chegou o dia em que, ao amanhecer, ele não pediu para ir ao jardim. Estava doente. Minha avó colhia folhas de chá e fazia de tudo, mas aquela febre não passava. Ao entardecer, todos nós já estávamos aflitos. Meu pai ainda não tinha chegado, porque depois do trabalho, ele ia jogar no bar, com os amigos.
Anoiteceu. Afonsinho não reagia. Parecia bem mais magro que naquela mesma manhã. Estávamos todos na sala, onde a minha mãe e minha avó apalpavam constantemente a testa dele, na esperança da febre ceder.
Era quase meia noite, quando papai apareceu na porta, chorando descontroladamente e trazendo na mão, uma "madrugada". Quando nos viu reunidos, ele olhou devagarinho para todos os cantos, como que com medo de deparar com a verdade. Ao ver Afonsinho doente nos braços da minha avó, ele se desesperou.
Com lágrimas escorrendo pelo rosto, contou que no caminho de volta pra casa, ao passar perto do jardim da estação de trem, uma "madrugada" curvou-se diante dele. Ao sentir um arrepio, ele apanhou aquela flor, e logo pensou no Afonsinho. Sentiu que aquilo representava um "mau presságio".
Terminado o seu relato, papai tomou o menino em seus braços e saiu desesperado, levando-o para a rua.
Minha avó continuou com a manta que o envolvia, vazia nos braços, enquanto mamãe gritava: Afonso! Afonso! O menino está sem agasalho...
Na nossa rua havia uma nascente, que se chamava "fonte da saudade". Papai era apaixonado por esse lugar. A água que ele bebia só podia ser de lá.
Sozinho, papai levou o menino até essa fonte, enquanto nós permanecíamos naquela sala, aos prantos. Ele foi lá, em busca de um milagre que pudesse salvar a vida do seu filho.
Poucos minutos depois, quando era exatamente meia noite, papai surgiu novamente naquela porta. Dessa vez, trazendo Afonsinho morto nos braços!
12/07/2004
3 COMENTÁRIOS:
todo dia corro aqui para ler mais um pouquinho da sua obra, a riqueza de detalhes e forma tão verdadeira com que você escreve me deixa completamente encantada... Mas o milagre aconteceu de verdade...Deus é o verdadeiro milagre, e Afonsinho a beleza que Deus escolheu para completar o milafgre do daquele dia...
beijos querida
ps: Sobre o padre, rs, fiquei com um problemão, afinal de contas que pecado uma criança tem? Dizer que falei palavrão era minha salvação...precisaria encontrar outro pecado...rs