quarta-feira, 7 de abril de 2010

O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA





O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA


Na década de cinquenta, a moda feminina era vestido rodado. Para isso, gastava-se muito pano. Lá em casa era difícil vestirmos assim, porque éramos muitas meninas. Usávamos vestido novo uma vez por ano, que era na época da semana santa.
Mesmo assim, minha mãe tinha o costume de comprar pano igual, para fazer a nossa roupa. A única que conseguia o seu tecido diferente, era a minha irmã mais velha, porque já era adolescente.
Ao sairmos juntas e iguais, ouvíamos sempre alguém dizer: Olha lá... o par de jarras!

Sapato então, era ainda mais difícil. Andávamos descalças o ano inteiro. O sapato que era comprado pra semana santa, só podia ser usado depois, se fosse para ir à missa aos domingos. Com isso, ele costumava durar mais do que o tamanho dos nossos pés. Às vezes ele alcançava a semana santa do outro ano; e aí meus dedos se embolavam lá dentro, fazendo a parte da frente se estufar.
Dessa forma, desde as primeiras procissões, meus pés já ficavam sofridos, antes mesmo de crucificarem Jesus Cristo.

Ao longo da infância, tive poucos sapatos, sendo todos do mesmo modelo. Era revestido de um verniz tão fraco, que ele já chegava da loja, com o brilho todo trincado, parecendo que nem era novo. Ele tinha o formato de um pastel. Como se não bastasse, na parte da frente, tinha um enfeite que imitava a cara de um patinho. Aquele patinho me fazia sentir frustrada.

No fim dos anos cinquenta, minha mãe foi na mesma loja da praça da Sé, para comprar fiado, o tecido para os nossos vestidos.
Eu nem corri para abrir a caixa do meu sapato, porque de uma coisa eu tinha a certeza: Lá estava o patinho outra vez. Parecia que aquela loja guardava o seu estoque de patinhos só pra mim.

Porém, o que ela trouxe dessa vez, apesar de ser do mesmo modelo, era preto e foi o último par desse tipo que usei. Ironicamente, eu gostei muito dele, sem saber que ali acabava a saga dos patinhos.

Minha mãe era muito nervosa e difícil. Ela só tinha afinidade com a filha mais velha. Bonita e discreta, eu só me lembro dela olhando no meu rosto, quando me ensinou a olhar as horas, num despertador branco, que ficava sobre o criado mudo do seu quarto.

Também, ela batia tanto na gente, que não sobrava tempo nem emoção para um afeto. Quantas vezes ela me bateu, sem eu saber a razão. Mais tarde, eu ficava sabendo que alguma vasilha tinha aparecido quebrada lá na cozinha... mas era uma das irmãs, que sempre fazia coisas assim e dizia que era eu. Ela é três anos mais velha.

No canto do fogão a lenha, ficava uma panela de pedra, cheia de sal, que era tampada com um prato de louça, muito antigo e amarelado, cheio de marcas de trincado. Parecia até um mosaico dele mesmo.
Esse prato era lembrança da casa da minha avó, de quando ela era ainda pequenina.

Eu que tinha a mania de comer sal, num dia, ao enfiar a mão na panela, vi o prato deslizar sobre o meu braço e quebrar-se sobre o fogão.
A primeira coisa que fiz, foi correr atrás de mamãe, para contar que eu tinha acabado de quebrar aquele prato.
Apanhar injustamente era tão doído... que apanhar pelo meu próprio erro, com certeza, deveria doer menos.

As surras cotidianas deixavam vergões altos por todo o corpo, onde podia-se ver pontinhos salteados de sangue.
Marcas maiores ficavam na minha alma, fazendo nascer em mim, uma enorme vontade de não existir. Decididamente, ela nunca gostou de mim.

Ao recordar de tudo, acho que ela me odiava, porque num certo período, as crianças que iam nascendo depois de mim, iam morrendo, enquanto eu insistia em continuar viva. Se Deus tivesse me levado no lugar de alguma delas, teria sido bom.
Toda vez que eu falava macio, ela me criticava, dizendo que eu era velha pra falar mole. Ela não enxergava em mim, uma criança.

Nessa semana santa, minha avó tinha ido para a casa do outro filho dela, na cidade de Ouro Preto.

Pela primeira vez, minha mãe se comportou mais compreensiva. Quando chegou da loja, ela espalhou os tecidos sobre a mesa, e nos deu a liberdade de escolher qual pano seria de quem. Eu escolhi um brim acetinado azul escuro, sem prestar atenção, de que seu volume era menor que os outros.

Ela costurava dia e noite. Havia pressa, para que pudéssemos acompanhar pelo menos, a procissão da sexta feira da paixão.
A expectativa da roupa era sempre grande, mas eu estava acostumada de, depois de pronto, meu vestido me deixar parecendo uma espiga de milho verde.

Dessa vez, ela só me chamou para provar, o corpête. Depois de tudo pronto, ela guardou o vestido.
Minha mãe sabia costurar como uma grande estilista. Ela fazia os moldes... inventava modelos...

Lembro-me que só para fazer a parte de cima, ela gastou o dia inteiro. Eu passava de longe, observando tudo. Eram frisos horizontais e verticais, que se encontravam, formando um monte de quadradinhos em baixo relêvo, e isso tinha o nome de "casinha de abelha".

Eu sempre admirava muito, essas casinhas de abelha, porque as meninas que se vestiam de anjo para acompanharem as procissões, tinham isso na roupa, e ainda havia lantejoulas e vidrilhos enfeitando cada baixo relêvo, tornando tudo reluzente.
Para completar, usavam asas maravilhosas e uma linda coroa brilhante na cabeça.

Era sexta feira santa. À noite, todo mundo se aprontou. Muito alegre, fui vestir o meu. Quando o coloquei e olhei para baixo, a cintura era pouco franzida e seu comprimento até bem abaixo dos joelhos. Outra vez, eu parecia uma espiga de milho.

Fiquei chateada e disse que não ia à procissão. As minhas irmãs estavam com seus vestidos cheios de roda. Bonito...
Minha mãe explicou que a falta de roda, era porque o pano foi pouco. Ela havia comprado mais barato, o resto de uma peça. Eu entendi e permaneci calada, pensando...

Fomos para o lado de fora, enquanto mamãe fechava a porta. Fiquei encolhida, porque fazia muito frio e eu não tinha paletó.
Ela abriu novamente a porta e trouxe um paletó velho e muito grande, e disse para eu vestir.
Vesti e logo em seguida, o tirei, porque ele era masculino e era de uma pessoa adulta. Ficou horroroso!
Calmamente, ela me disse que, eu poderia então, ficar na casa da vizinha, caso eu resolvesse não ir. Apesar do frio, ela guardou o paletó e eu fui assim mesmo.

Ao passarmos perto da antiga cadeia, o único preso espremia o seu rosto nas grades, para não perder a cerimônia. Fiquei reparando nele, e associei-o ao personagem do bom ladrão.
O gramado estava lotado! Na porta da igreja havia um palco enorme. A crucificação era celebrada na porta da outra igreja do lado. Então, para que seria aquele palco?

Dois holofotes se acenderam e uma irmã de caridade aproximou-se do microfone, pedindo silêncio. Anunciou que, antes da crucificação, haveria um espetáculo de um balé russo, que apresentaria ali, "a morte do cisne".

As cortinas se abriram. Eram tantas árvores e flores pintadas naquele fundo, que eu fiquei deslumbrada. Enfiei-me no meio daquele povo, e fui parar pertinho do palco. Queria ver tudo de perto.

Iniciou-se a música clássica! Respirei fundo e me senti suspensa...
Várias bailarinas vestidas de branco, entraram naquele espaço mágico. Aquelas roupas curtinhas que elas usavam pareciam sombrinhas abertas e repolhudas.
Elas dançavam, dançavam! Pareciam estar voando...

Mesmo hipnotizada por tanta beleza, uma dúvida me incomodava. Em que momento, entraria em cena, o cisne que a irmã de caridade falou?
Imaginava um cisne de verdade, ou alguém vestido de cisne.
O espetáculo continuou...

Minha emoção já havia atingido um nível tão profundo, que jamais conseguirei exprimir. As bailarinas pareciam verdadeiras fadas.

No final, a bailarina principal chegou bem no centro do palco, e dançando devagarinho, começou à se encolher no chão, ao mesmo tempo em que tremia muito, todo o seu corpo. Na medida em que ela se encolhia, seu corpo tremia mais devagar... mais devagar... até que parou!
Naquele momento, eu vi nela, o próprio cisne!

As cortinas se fecharam e se abriram várias vezes. Os aplausos eram tanto, que as palmas estralavam naquele gramado, misturando-se aos assobios e gritos de fascinação!
As bailarinas de mãos dadas, curvavam seus corpos, em agradecimento!
Bravo! Bravo!!!

Naquele momento, minha alma transcendeu no infinito... Olhei para o meu vestido, achando-o todo belo. Passei as duas mãos naquele corpête de casinha de abelha, num sinal de agradecimento. Afinal, foi vestida com ele, que eu assisti
"O maior espetáculo da terra"

04/04/2005



Enquanto eu batia palmas, lembrei-me que, na semana anterior, minha professora (Dona Olímpia), havia nos ensinado a bater palmas com elegância, dizendo que apenas a metade da mão direita bate na palma da mão esquerda, no sentido transversal.

Antes de ir comprar nossos sapatos, minha mãe colocava um papel no chão, onde pisávamos. Com um lápis, ela riscava, copiando o contorno dos nossos pés. Recortava cada par, levando-os para a loja. Isso provocava muitas cócegas, além da alegria de saber que, logo logo, sentiríamos aquele cheirinho de sapato novo.
Apesar da cara de patinho.








3 COMENTÁRIOS:

Virgínia Allan disse...
Amapola, não te preocupes mais.. a visualização já está acessível. Quanto ao post, parabéns, ternas lembranças que remetem a minha própria infância. Feliz 2010. Beijo
Virgínia Allan disse...
Este sol se apagou de vez. Tenho outros, estrelas anãs, que ainda não possuem o mesmo fulgor. De qualquer forma, obrigada. Beijo
Maria Izabel Viégas disse...
Amapola de Mariana, a linda cidade de Mariana. Amei-a mais do que Ouro Preto, sabia!
Querida, obrigada por me visitar no meu Memórias.
E aqui estou a retribuir nas suas Memórias.

Sua hstória me emocionou...
E me fez recordar de como a vida de Ontem era dura, sem muitos confortos, mas junto a uma dor..lá estava um momento como este : assistir a "Morte do Cisne, em Mariana. Imagino tua emoção.
Amada escreves muito bem.
Passas toda a emoção da tristeza de menina mas sente-se que és feliz!
Amei...escreva mais, Amapola...quero te ouvir!
Beijos no seu coração mineiro!
Muita Paz!

3 COMENTÁRIOS:

Amapola disse...
Testando esse espaço para comentário.
Sandra Botelho disse...
Que texto, maravilhoso...me perdi entre as palavras e não desgrudei os olhos. me descobri em muitos trechos. Bjos no coração!
RENATA MARIA PARREIRA CORDEIRO disse...
Lindo, querida. Simplesmente encantada. Reli e me atrasei para o médico. Valeu a pena! Parabéns!
Beijos!
Renata
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ANJO
Sou um anjo
Abro as minhas asas
Para descobrir o esplendor do mundo,
Ajudar os corações partidos,
Dar a esperança para continuar,
Aliviar as suas dores
Combater os seus medos,
Sou pomba de asas brancas,
Meu coração é doce e puro,
Meu canto suave e risonho
Embala-te para que durmas
E tenhas lindos sonhos...
Poema da Renata M. P. Cordeiro

http://blogrenataosonhodounicornio.blogspot.com/

Minha amiga, vc poderia visitar este blog, que não há como comentar? É em prol dos Direitos Humanos.
Se puder ajudar, agradeceríamos.

10 comentários:

  1. Sempreeeeeeeee com essas memórias tão lindassssssssssssss.
    Minha amiga, voce deveria escrever um livro.
    Eu fico encantada quando leio suas histórias, coisas reais, que voce viveu.
    Me faz sempre relembrar coisas do meu passado tbm.
    Beijooooooooooo amadaaaaaaaaaaaa!!!

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  2. Seus textos são delicados e cheios de sensibilidade, Amapola.

    Obrigado pelas visitas oportunas e pelas palavras carinhosas.

    Grande abraço!

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  3. Viajei na sua infância...através da riqueza de detalhes e pela sua emoção que era nítida em cada palavra.

    Beijos e flores!

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  4. Lindo amada.
    Eu flutuei rs.
    Eu nasci nos anos 60 mas ñ curti essa decada,eu lamento tanto.Fico eu me imaginando com esses vestidos rodados e passeando de calhambeque rsrsrsrs.
    Maravilhosa postagem,obrigado por nos ofertar tão belos escritos.
    Beijokas amada

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  5. Amapola,

    obrigada por partilhar as suas lembranças. Gostei muito. Muitíssimo!

    beijinhos no coração,

    Gisele

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  6. Querida Amapola

    Tudo que vem de vc tem um toque de flor, deixa ternura e perfume.Bjs.Fátima Guerra (Mellíss)

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  7. Olá, Amapola
    Que engraçado!
    Vc não tem ideia como me identifiquei com vc... com sua história...
    Meu Deus!
    Temperamento como da "mãe relatada" tem em todo lado... em MG, no RJ...
    Ainda bem que progredimos e o tempo nos deu conformação e sabedoria para compreendermos tudo o que se nos passou.
    Força em Deus e essa história é a de muitas meninas... por aí...
    Bjs

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  8. Amapola li todo o texto, vc retrata com riqueza de detalhes suas vivencias, isso é muito bonito, lembrar de cada coisa que aconteceu na vida, faz bem, obrigado por compartilhar!

    meu pai me falou que foi calsar o primeiro par de sapatos com 18 anos, e ele disse que lembra de quando era criança que a as tias de minha mãe andavam com vestidos da mesma cor, acho que era mania pelo jeito, minha avó fala que antes para fazer um vestido pra ela quando era adolescente gastava-se inumeros metros de tecido e fitas coloridas para compor a trança do cabelo, pena nao ter nenhuma foto, deve que ficava muito vintage!

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  9. Que lindo....fiquei encantada e parada no tempo...Obrigada pela oportunidade!

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  10. Amada, bom dia. estava lendo em seu outro blog a história da paranormalidade do seu sobrinho, mas não consegui postar ali, mas confesso que fiquei impressionada com o que li.
    Como vai ele hoje?
    Um bom domingo pra ti minha queridaaaaaaaaaaaa!

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